03/09/2016

Quando a gravidez vira câncer

Com um nome aparentemente complexo e pouco conhecido, a doença trofoblástica gestacional (DTG) é uma anomalia da gravidez que está mais próxima de nós, mulheres, do que se imagina. Ela é uma espécie de erro no processo de fecundação do óvulo pelo espermatozoide que, se não identificada e tratada a tempo, pode se desenvolver em câncer e levar a paciente à morte.
Recente pesquisa do grupo de estudo de DTG, coordenado pelo médico ginecologista e obstetra Antônio Rodrigues Braga Neto, conseguiu mapear os casos da doença nos 38 Centros de Referência do País. Os números dão o tom da gravidade do mal: a cada 200 mulheres que engravidam, uma desenvolve a DTG. Nesse conjunto, 0,9% acabam morrendo em decorrência de complicações dessa moléstia.

Há 11 anos, Antônio Braga se dedica ao estudo desta que virou uma doença negligenciada e endêmica. Desde o retorno do pós-doutorado na Harvard Medical School (2009) e no Imperial College of London (2012), Braga coordena o terceiro maior Centro de Referência no mundo em DTG, no Rio de Janeiro, constituído pela Maternidade Escola, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pelo Hospital Universitário Antônio Pedro, ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF).
O médico, que também é professor das duas instituições de ensino (UFRJ e UFF), tem expandido suas pesquisas sobre a DTG e sua divulgação na comunidade científica por meio dos auxílios da FAPERJ obtidos em dois anos consecutivos. Em 2011, ele foi contemplado no edital Pensa Rio – Apoio ao estudo de Temas Relevantes e Estratégicos. Já em 2012, recebeu financiamento por meio do programa de Apoio às Instituições de Ensino e Pesquisa Sediadas no Estado do Rio de Janeiro e do Auxílio à Organização de Evento Científico (APQ 2).
Os esforços do médico e de sua equipe de pesquisadores geraram frutos. Este ano, eles publicaram cinco artigos em renomados periódicos científicos na área de ginecologia e obstetrícia: o The Journal of Reproductive Medicine, o American Journal of Obstetrics and Gynecology, o Gynecologic Oncology e o International Journal of Gynecological Cancer, além de reconhecimento com o prêmio Presidente da Academia Nacional de Medicina, maior honraria na área cirúrgica dada a um médico brasileiro. O grupo liderado por Braga é o principal núcleo de estudos dessa doença em toda a América Latina, realizando investigações multicêntricas em nível nacional e internacional, e divulgando estudos de ponta nessa área da medicina.

Segundo Braga, o Brasil aparece no ranking mundial como um dos países com mais casos de DTG. "A doença é cinco vezes mais comum aqui do que nos Estados Unidos e 10 vezes mais prevalente do que na Europa. Ainda não sabemos o porquê dessa maior ocorrência no Brasil, mas as pesquisas já nos mostram alguns fatores que explicam o maior desenvolvimento desse mal em certos pacientes", afirma o pesquisador.

O professor explica que a doença é uma espécie de erro na fertilização. No processo de fecundação, é quando o espermatozoide fecunda um óvulo sem material genético (DNA). Ou então, dois espermatozoides fecundam um mesmo óvulo sadio, levando à formação de uma célula com 69 cromossomos. Em ambos os casos, não há a geração de uma gravidez normal e sim um amontoado de células, um tumor. Por isso, a gestação não tem como seguir e precisa ser interrompida.
Diferente do que se imagina, a DTG não é silenciosa. Já nas primeiras semanas da suposta gestação, a mulher tem sintomas incomuns às gestantes no início da gravidez, tais como pressão alta e hemorragia. Ao longo das semanas, observa-se que a barriga da paciente cresce além do esperado e os ovários formam cistos, o que provoca dor pélvica (na região da bacia).

"Em 80% dos casos, a doença trofoblástica gestacional tem evolução benigna, que é a gravidez molar, que cura espontaneamente após o esvaziamento do útero. Mas em 20%, ela pode apresentar a evolução maligna, chamada neoplasia trofoblástica gestacional (o câncer da placenta) que, se não tratada com rapidez, pode se espalhar pelo corpo, criando metástases, que acometem principalmente o pulmão, a pelve, o fígado e o cérebro. Nesses casos mais graves e avançados, as chances de cura ficam reduzidas", diz Braga. 

Segundo o professor, algumas pistas sobre as causas do desenvolvimento da doença vêm sendo investigadas. "Suspeitamos que fatores nutricionais podem estar envolvidos. Parece que pacientes com uma dieta pobre em vitamina A e proteínas teriam maior predisposição a desenvolver essa anomalia", diz o pesquisador, que ressalta não haver qualquer tipo de relação socioeconômica entre o perfil de mulheres acometidas pelo distúrbio.

Outra descoberta é que a doença é mais comum nas mulheres que estão nas extremidades da idade fértil: adolescentes até 19 anos de idade e mulheres com mais de 40 anos. "A relação da DTG com uma possível herança genética é uma das hipóteses que também estão sendo investigadas, mas que ainda precisa ser melhor estudada", acrescenta.  
Segundo Braga, o número de diagnósticos da doença vem crescendo no País, em função do aumento de pacientes captadas pelos Centros de Referências de DTG e, principalmente, do maior acesso da população aos exames de ultrassonografia. No entanto, o médico ressalta que a identificação precoce da doença continua abaixo do desejado.

"Ainda recebemos muitos casos diagnosticados tardiamente, o que aumenta a gravidade e as chances da paciente vir a óbito", afirma o pesquisador, que antecipa que o projeto de um de seus orientandos de doutorado prevê criar um banco de estatísticas nacional de mortes decorrentes dessa doença.  
Uma vez diagnosticada a anomalia no pré-natal, por meio de ultrassonografia, a paciente, seja da rede pública ou particular, é encaminhada para o Centro de Referência de assistência à doença. Lá, ela é submetida a aspiração uterina. Após o procedimento, será preciso ainda verificar se a anomalia não evoluiu para a forma maligna, o câncer da placenta. 

"Sabemos que a doença pode seguir para a cura ou para o câncer. Diagnosticamos isso por meio da dosagem de um marcador tumoral, a gonadotrofina coriônica humana (hCG). Se ele cair e se normalizar após o procedimento de aspiração uterina, a paciente está curada. Caso contrário, o tratamento deverá ser complementado com quimioterapia", explica Braga. 
O pesquisador salienta que o SUS (Sistema Único de Saúde) vem realizando atendimento de excelência na área, reconhecido, inclusive, pela Associação Brasileira de Doença Trofoblástica Gestacional e pela International Society for the Study of Trophoblastic Disease, a associação internacional que estuda a doença. "Todo o tratamento é público e gratuito", frisa o médico, que aposta no diagnóstico precoce e nos estudos de pesquisadores de ponta para reduzir os casos deste sério problema de saúde pública nacional.

Fonte; FAPERJ ´ Aline Salgado